Entrevista com Flávio Lopes e Fábio Rocha.
Jogando com a experiência do acaso, em sintonia com o clima de improvisação musical das jam sessions semanais que acontecem no MAM Bahia, o videoartista Flávio Lopes e o cineasta Fábio Rocha assinam a direção do primeiro DVD da JAM no MAM. O DVD tem patrocínio da OI e do Governo da Bahia, através do Programa Estadual de Fomento a Cultura – Fazcultura, com Apoio Cultural do OI Futuro. Nessa entrevista, eles falam sobre o processo de criação do material, assim como a importância desse registro para a música baiana.
E então, como ficou o resultado do DVD da JAM no MAM?
Flávio Lopes – A essa altura é difícil avaliar, estamos muito contaminados pelo trabalho, nos falta o distanciamento necessário para entender seus desdobramentos. Agora é com a audiência, eles é que vão avaliar os resultados. É interessante pensar que esse DVD surgiu como uma demanda do próprio público, que sempre quis carregar consigo uma parte dessa experiência; cabe a eles, agora, completar o sentido da obra.
Indo um pouco mais além, diremos que, nas duas últimas décadas, os ritmos carnavalescos produzidos na Bahia engessaram a cena… Daí a necessidade de alguns artistas de buscar completar esse panorama com outros estilos, outras paisagens sonoras. Do samba ao jazz, passando pelo choro, algumas obras foram feitas para dar sentido à diversidade de nossa produção, que alguns insistem em reduzir a uma invenção discursiva, denominada de “identidade cultural”. Essa cultura espetacularizada, produzida a partir do modelo de negocio da indústria fonográfica e seus donatários. A economia do lazer, aqui, abre caminho para possíveis reinvenções, a cinestesia do espaço, para o sentido da improvisação, para a superação da mesmice.
Em verdade, trata-se também de uma linha transversal, já que esse dispositivo discursivo atravessa diversas falas. O que fizemos foi, de modo bem impreciso, organizar esses encontros. A variação intensiva do freejazz com um acorde dissonante, um passeio por essa Varanda... Um olhar displicente para os erês-alabês que tomam de assalto o establishment do Jazz moderno, que, diga-se de passagem, teve durante muito tempo uma função de entretenimento, mas também ritual, como exemplo dos worksongs. A atonalidade, a dissolução da simetria rítmica do metro e do beat, a incorporação da percussão ao Cantaloupe Island de Herbie hancock é o que nos interessa. O resultado é essa breve e despretensiosa transição entre os espaços internos da música e os espaços externos e poéticos da cidade.
É um produto direcionado para o fã da JAM?
Fábio Rocha – A JAM tem uma audiência bastante heterogênea, é impossível contemplar toda esta expectativa. Não temos a pretensão de querer dar conta desse fenômeno que é a JAM no MAM. Fizemos apenas um pequeno recorte, que pretende ser uma primeira aproximação. Procuramos reunir alguns aspectos que fazem do evento o que ele é, espero que tenhamos feito as escolhas certas. Nosso fazer não foi direcionado para o público. Nossa mirada foi em direção aos espaços vazios… Queríamos saber algo sobre Earl Hines, Duke Ellington, o blowing changes, o swinging, improvisação, interação em grupo, as composições locais que entram como a fonte Sonora do filme: Donatiando, de Ivan Huol, Erê Alabê, de Ivan Bastos, e Jamnomam, de Paulinho Andrade. Melodias, harmonias, a intensidade rítmica, o Flugelhorn tocado por Joatan Nascimento; como o Kind of Blue de Miles Davis… Sonny Rollins… Pat Metheny, que vieram dar na praia, aqui no nosso quintal... Sobre o Real Book, versões modificadas das músicas… É um doc que segue a linha do AD LIBITUM, é algo que não passa necessariamente pelo campo das verdades acabadas. Ao contrário, ele se realiza no limiar da potência de agir. A nossa direção se realiza na nostalgia de criar. Não queremos constranger o público com nossas certezas, nem tampouco ser aprisionados pela ideia de um público abstrato, de quem nada sabemos. A dupla-articulação, aqui, entre conteúdo e expressão, é o que interessa, quid facti. É nesse sentido que se diz por aí: “O movimento não é imagem do pensamento sem ser também matéria do ser”.
Qual é o conteúdo do DVD? São imagens das jam sessions no MAM ou existe material exclusivo, criado especialmente para o DVD?
Fábio Rocha – A JAM é um evento muito singular; ela tem sua própria dinâmica, que está lastreada no modo do improviso. Elencamos alguns vetores que achamos importantes num dia de música instrumental. O filme segue como uma onda sonora, em suas vagas de criação; questões que atravessam o evento e que estão colocadas sem se reduzir somente ao formato convencional. Em se tratando de conteúdo, entendemos que quando o olhar se movimenta pela superfície da JAM, acaba encontrando elementos “exclusivos”, acontecimentos únicos: uma entrevista no pôr do sol do Museu de Arte Moderna ouvindo Take Five... Isso não acontecerá de novo, da mesma maneira. Levados pelo improviso, que é o modus fasciendi da música instrumental; e esse acaso-construção se fez presente ao longo da construção do DVD, o que contraria o modelo de quem produz esse tipo de produto exclusivamente como mercadoria. Trata-se antes de um mapa de instantes; daquilo que entrou na nossa frente, se fazendo interessante; as coisas, as palavras chegaram até nós, não fomos atrás de nada… Mesmo porque algo que temos em comum é o apreço pela distensão. Gostamos de criar a revelia da ótica mercantil, quando se trata de captura. Fomos convidados e propusemos ao mesmo tempo. Assim sendo, as imagens, os planos de composição, estão impregnados por esse acaso-construção, e faz-se verdadeiramente nosso, qualquer erro, assim como qualquer acerto. Mas não há como desconhecer o imperativo do mercado; somos todos afetados por ele. Tudo é mercadoria, tudo pode ser comprado e vendido. Mas insistimos que o que nos afetou foi a cor do fim de tarde, as pessoas circulando livremente, a beleza incrustada de pedra e cal. Tudo soando pra gente como um quadro de William Turner fruído num compasso nove por oito…
Quais são as sessões do DVD?
Flávio Lopes – Na verdade estamos fazendo dois DVDs, que serão disponibilizados juntos em um único encarte. Ao todo são sete tópicos. Um documentário, que transita entre o som e o sentido; uma leve montagem de um dia na VARANDA, ouvindo a música que está fora da mecânica do Star System. São acontecimentos únicos que se dão na repetição de um evento. A Gamboa de Baixo, as histórias que subjazem na memória coletiva, o Solar do Unhão, a escravidão, a percussão ressignificando a melodia do lugar. Tudo isso soa melhor a cada novo improviso; então fizemos isso; alinhavamos alguns desses conteúdos… Do palco para o solo, do solo para uma entrevista, da entrevista para uma memória remota, tudo isso copilado em dois DVDs. O modo como isso reverbera, como foram feitas as escolhas; quem são essas figuras e o que elas têm pra dizer. What are yours Favorites Things? Queremos interagir ano espaço-tempo sem perder a cadência no círculo das quintas…
Esse formato foi inspirado em algum outro produto?
Fábio Rocha – A inspiração é o improviso. No modo Dórico, ou Lídio, tanto faz, contanto que nos arrebate. Somos artistas com algumas afecções em comuns, estamos interessados por tudo que transita pelos interstícios dos acontecimentos; pelo modelo, pela cópia, pelo copyleft, pelos reprocessamentos, como o que fazemos no Live Act. Jazz Improvisation Primer… We Got Rhythm… Há, pois, uma expressão relativa no conteúdo, e há um conteúdo relativo na expressão… Estados intermediários, instâncias que interagem, trocas, (des)equilíbrios. Num processo artístico, existe sempre este duplo desvio… É preciso tornar-se invisível para que as coisas apareçam, mostrem sua “condição”. Transitamos por entre as coisas como elas se nos apresentam… O ponto de vista diferencial é que paisagem, enunciado e audiência fazem parte do mesmo fenômeno (Quem nunca foi ao Solar do Unhão?)… Ver ele se transformar, reprocessados pelo sinal da câmeras na mesa de corte… Em suma, há algo que sempre escapa num produto dessa natureza; é isso que afirmamos como potência desse encontro.
O que foi destacado nas entrevistas?
Flávio Lopes – Destacamos o modo com as articulações foram feitas; as interfaces do processo cultural, enquanto mercadoria; os agenciamentos, como tudo isso se situa na eternal cintilação da identidade local. Do maestro Letieres Leite ao jornalista Marcos Pierry, passando pelo agitador Lázaro toca raul, temos um dispositivo de improviso…Um cinema do presente, uma ação-caligráfica… As entrevistas vão do afeto pessoal de cada músico, a temas que atravessam a situação política da cidade e aquilo que propriamente interessa: a música instrumental na Bahia; um recorte impreciso, obviamente, mas inaugural; um disponere (dispôr), um colocar na roda. O destaque fica por conta do próprio dispositivo-audiovisual atravessando a música dita menor por aqui.
As imagens foram gravadas durante a JAM?
Flávio Lopes – As imagens foram feitas durante algumas sessões; fizemos o recorte de um dia para o documentário. Utilizamos também as imagens do Vjing aproveitando o sinal, reprocessadas do Live Act. As faixas foram gravadas na íntegra. Trabalhamos com o a ideia de que a JAM é uma experiência multisensorial, e que as imagens deveriam buscar estas relações com aquele fenômeno; nada que não fizesse parte desse contexto de varanda, entraria, salvo no discurso, na voz dos protagonistas. As imagens deviam seguir sempre os agenciamentos daquele espaço à beira mar.
O objetivo era fazer com que o discurso soasse como um instrumento, fazendo com que desejo e memória se exprimissem livremente, tal qual um improviso, desfraldando uma certa riqueza que jaz(z)ia em silêncio…
E quais são os destaques do DVD?
Flávio Lopes – Cada conteúdo tem sua bossa. O Documentário, as Entrevistas, os Solos, o Vídeo-memória, as faixas, tudo corrobora para que a JAM seja experienciada de uma maneira incomum, ainda que tenhamos nos concentrado no espaço da performance. Os Solos são pequenas pérolas de musicalidade, que para o amante da música é o que realmente importa. O jogo aqui é a experiência do acaso. E o acaso para nós é toda a possibilidade de acontecimento. O destaque é o encontro do olhar do câmera com a performance do músico, processado pelo VJ, reescrita posteriormente durante a edição. Gostaríamos de destacar esse protocolo, de enunciação da vida contemporânea.
O que foi mais difícil durante todo o processo de produção do DVD?
Fábio Rocha –O mais difícil no processo é sempre o homem e suas afecções com o tempo, com o espaço, com a tecnologia… O tempo é sempre o vetor mais difícil de controlar, seja porque deixamos tudo para a última hora, seja porque vivenciamos uma vertiginosa aceleração tecnológica. O certo é que as coisas estão sempre além ou aquém de nossos desejos. Mas que tal falarmos de outras dificuldades? De como capturar o JAZZ de improviso, que só existe apenas no momento da criação…? De como é possível capturar esses instantes? De como instituir protocolos de representações deste casual duelo entre frames e acordes?
Já dá pra pensar num segundo DVD...?
Flávio Lopes – Durante o processo, muitas veredas são deixadas de lado, isso nos coloca sempre na perspectiva de dar continuidade ao processo de investigação, esperamos que isto seja possível. Precisamos reverter essa prática de não nos responsabilizarmos pela escrita de nossa história. Ou alguém tem dúvidas sobre a importância da JAM no desenvolvimento da música instrumental na Bahia? A cada performance a cena se modifica; um mesmo tema nunca se repete, ele está sempre sendo recriado, e isto faz parte da própria ideia de jazz... Com certeza um segundo volume deve surgir para continuar esta narrativa, ou, quem sabe, ampliar este horizonte num documentário mais abrangente, passando a limpo a História da música instrumental na Bahia…É preciso ter fôlego! Mas é sempre boa aquela sensação de estar ali, naquele avarandado com a Banda Base “abaianando” Impressions, de John Coltrane… Flanando por entre os gingados de uma quase festa de largo… Chova ou faça sol… A música faz virar esse motor...